SER SÓ TRAQUINA, LOIRA ME...


Foi inaugurada sexta feira a casa da cultura, em Ponte da Barca. Na parede surge estampado o hino de Ponte da Barca. Para quem não tem cultura musical, esta nota aqui do canto inferior direito não é o fim do refrão... a musica acaba naquela parte do "ser só traquina loira e me(?)" (falta o "menina para dar ao pé")

A cultura em Ponte da Barca parece estar no bom caminho, mas ainda é meia menina a dar ao pé. Mas isso da cultura afinal é o quê? A procurar resposta para esta pergunta, acabei por escrever este texto. Vale a pena ler porque lá para o meio falo de sexo e tiros.

As definições de cultura são muito diversificadas nas várias áreas disciplinares que a abordam, onde se incluem a antropologia, a sociologia, a psicologia, a história, a arquitetura, entre outras. No entanto, todas têm um aspeto fundamental comum: não há cultura sem ser humano. A resposta à questão ‘o que é a cultura?’ tem-se revelado, pelas várias áreas de estudo, muito escorregadia.
Procuro responder a uma questão mais pertinente para mim: ‘onde está a cultura?’.
O autor que dá a resposta mais adequada ao contexto em que se desenvolve esta dissertação é o antropólogo Clifford Geertz (1926-2006), defendendo que a cultura se localiza no exterior do ser humano, ou seja, na esfera pública. Define cultura como sendo o sistema de absorção de símbolos que carregam significados e que os símbolos provêm dos espaços físicos que o ser humano habita.
Geertz não considera que a cultura se localize no pensamento humano, rejeitando a hipótese de que a mente “contém” cultura, defendida pela vertente da antropologia cognitiva. O pensamento, segundo Geertz, não consiste em acontecimentos mentais, mas antes no trânsito e constante desvio mental de símbolos, com significados extraídos na esfera pública. Nesse contexto, propõe uma antropologia interpretativa, de experiência de proximidade, que estude os indivíduos no contexto onde ocorrem as transições dos símbolos percetíveis.(1)
A “cultura”, no meu ver, não é uma “entidade” misteriosa, nem um “bicho frenético” que faz transitar símbolos no interior do pensamento humano. A cultura é, basicamente, aquilo que essa “entidade” ou esse “bicho frenético” materializam no espaço físico, enquanto comportamento/ ocupação ou enquanto conceção/transformação espacial.

“Culture is here in front of our eyes, apparent in the bustle of transactions, managed through the
shuffling back and forth of little packages of meaning - symbols exchanged between people in public
places.”(2)

Um aspeto fundamental para perceber o contexto em que se utiliza o termo “cultura” é a ideia de que embora haja uma cultura geral num determinado lugar, a cultura é sobretudo específica a cada caso concreto, a cada tempo e a cada indivíduo dentro desse lugar.
O pensamento (que não é cultura), ao ser um sistema de absorção e trânsito mental de símbolos com significados, redireciona os símbolos e significados absorvidos e pode, por isso, transformar cultura. Assim, a cultura é entendida não apenas como o conjunto de símbolos e significados que influencia a atuação humana mas, simultaneamente, como um resultado dessa atuação.
Ao definir cultura como um resultado da atuação humana, pode-se considerar a arquitetura parte dessa atuação. A arquitetura pressupõe transformação espacial, que resulta em novos símbolos com novos significados, que serão absorvidos e redirecionados pelo pensamento humano num processo contínuo. Ou seja, a arquitetura, resultando da cultura, é um instrumento que reinventa a cultura de onde parte, com as sucessivas transformações materiais.
O fenômeno de referenciação nas opções de atuação humana (em que se inclui a produção arquitetónica) resulta da acumulação de ações, símbolos e significados adquiridos, que reflete a época e grupo em que se insere a atuação, mas também o contexto cultural específico de cada ator humano.
Cultura e arquitetura são dois conceitos indissociáveis. A cultura influencia os modos de produção arquitetónica, do mesmo modo que a arquitetura produzida influencia a cultura dos lugares.

Há muito ainda por fazer pela cultura de Ponte da Barca, mas surgem sinais positivos que me animam, como a criação desta casa da cultura, num projeto de reabilitação da antiga escola primária que resultou de um concurso público de arquitetura bastante interessante.
Aos arquitetos cabe agora o papel de produzir nova cultura. É urgente transmitir cultura arquitetónica ao público em geral, porque é o povo que tem a faca e o queijo na mão. Mostremos que fatiamos  queijo como ninguém.

P.S. Tinha qualquer coisa sobre sexo e tiros para dizer, mas esqueci-me.
1- GEERTZ, C. (1983) Local Knowledge: Further Essays in Interpretive Anthropology. New York: Basic Books.
2- DE MUNCK, V. (2000). Culture, self, and meaning. Prospect Heights, IL: Waveland Press p. 12